Cristovam Buarque
Se uma pessoa está doente sente que necessita de remédio. Se está com fome, necessita de comida, mas se não sabe ler, ninguém diz que ela necessita de educação. Ela própria não tem este sentimento. A falta de educação não é vista como uma necessidade, como doença ou fome. Educação não é vista como o preenchimento de uma necessidade. Esta é uma das causas do abandono da educação: não ser vista como uma necessidade, como doença ou fome. Na beira de um rio, sente-se falta de uma ponte; entre duas cidades, falta de uma estrada; na poeira, sente-se falta de asfalto; no escuro, deseja-se energia elétrica. Também sentimos falta dos produtos industriais, mas a falta da educação não produz esta sensação de necessidade, de escassez, de fome, de demanda. A falta da educação não dói no estômago. A educação é vista como um valor agregado, não como o preenchimento de um vazio. Como um acréscimo, não como atendimento de uma necessidade.
Quem come percebe a necessidade de quem passa fome; quem se veste, sente a necessidade de quem tem frio; quem tem saúde sente pena do doente; contudo, o educado não sente a dor do deseducado e ainda põe nele a culpa de sua deseducação. Porque ninguém imagina que o deseducado foi condenado ao estado em que está por falta de atendimento educacional, da mesma forma que uma pessoa na fila do hospital está carente de atendimento médico, ou a que está em pé na parada de ônibus está carente de atendimento de transporte. Uma pessoa sem educação não é vista como necessitada. Uma pessoa na fila para conseguir vaga na escola para o filho não é vista como carente de um serviço de que necessita.
Os programas de saúde tratam, igualmente, os doentes jovens e velhos, estes até com mais ênfase no atendimento de suas carências. Já o programa atual de alfabetização se concentra nos jovens, pelo que eles produzirão a mais ao aprender a ler. Como se não valesse a pena alfabetizar os velhos, porque a alfabetização não é vista como uma necessidade e um direito, no máximo como uma ferramenta.
Há muitas razões pelas quais a educação brasileira é uma tragédia, mas a maior dessas causas é a percepção de que ela não é uma necessidade, é um “plus”, algo mais, como um luxo.
Esse é um erro trágico para o futuro do Brasil: não sentir necessidade de educação como se sente de comida, de hospital, estrada, ponte, hidrelétrica.
O fato de termos, em pleno Século 21, 14 milhões de analfabetos, não é visto como uma necessidade a ser atendida para erradicação de uma tragédia, como foi a erradicação da poliomielite. O analfabetismo, no máximo, é visto como um problema a ser resolvido. Não se vê o contingente de analfabetos como um potencial desaproveitado, nem uma multidão necessitada. Não são percebidos como uma imensa população que precisa reconhecer a bandeira de seu País, que eles não reconhecem por não ler o lema escrito no centro. A falta de educação não é vista como um vazio a ser preenchido.
Quando tomamos conhecimento de que 30 a 40 milhões de brasileiros, o que equivale a 400 grandes estádios de futebol, são analfabetos funcionais, não temos a percepção de que eles estão privados de direitos, que passam fome de leitura, de emprego, de compreensão do mundo.
Quando lemos as estatísticas de que apenas um em cada três jovens termina o ensino médio – e, mesmo assim, com qualidade medíocre – não percebemos que isso significa 60 crianças saindo da escola por minuto, nem sentimos a necessidade delas receberem educação como fato tão forte quanto a fome de saber, uma ponte para o futuro, uma central de energia.
O problema de nossa tragédia educacional decorre de muitos fatos. O mais determinante deles é que não tratamos deseducação como necessidade.
Artigo publicado na revista Profissão Mestre de janeiro de 2011.
Professor da Universidade de Brasília e senador pelo PDT/DF. Site: www.cristovam.com.br.
FONTE: http://profissaomestre.com.br/php/verMateria.php?cod=5502
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